Monday, December 10, 2007

Serra Amarela


Sábado, 8 de Dezembro, voltei à Serra Amarela. Este ano terá sido a quinta ou sexta vez que por lá andei. A chuva e o nevoeiro foram a companhia dos 30 caminheiros do UPB, de modo que não pudemos apreciar a Serra Amarela em toda a sua beleza.

Realizada em homenagem a Miguel Torga, connosco levamos o poeta e em alguns lugares fomos lendo textos e poemas. O Diário III relata uma jornada em 25 de Julho de 1945 pela Serra Amarela que em parte procuramos refazer. Então, para visitar um velho fojo, Miguel Torga contratou um pastor como guia em Vilarinho da Furna. Esse guia, o Fecha, viria a tornar-se um dos seus amigos no Gerês. Mais tarde, no volume 5 da "Criação do Mundo", este episódio seria recordado como um relato de Fecha de forma muito interessante. Ainda que Vilarinho já não exista, a serra está lá. Praticamente igual na sua “pureza essencial e granítica”. As antenas da Louriça são das poucas marcas na paisagem. De resto continua igual. Numa outra caminhada com o UPB, tive a sorte de termos como companheiro de caminhada um natural de Vilarinho (baptizado no UPB como Furna). Foi ele que nos explicou a história do estradão que começaria junto à Louriça e seguiria até à Portela do Homem. Um estradão que parou no muro com que aldeia demarcou o seu território. Esse projecto interrompido continua na serra como símbolo da força comunitária de Vilarinho da Furna. Mantendo-a praticamente sem estradas, como terra do “sopro claro das livres asas e o riso aberto dos grandes sóis”.

Açor, Serra da Lousã, 26 de Outubro de 1942 – Aqui estou, no alto desta serra ondulada, sentado, a contemplar um largo horizonte, enquanto o cão abana o rabo, um tanto ao quanto perplexo dum descanso com perdizes à vista. Paciência, camarada, que são apenas dois minutos. O coração ainda puxa, mas já pede de vez em quando, pelo amor de Deus, um pouco de caridade cristã. De maneira que não há remédio. De resto, faz parte do meu ritual subir aos altos, sentir a voluptuosidade da fadiga, como diz Unamuno, e depois olhar. Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa sempre foi generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras e as cores do chão onde firmo os pés foram sempre no meu espírito coisas sagradas e intimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo na paisagem integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito ou do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil. Lá está o exemplo de Miguel Ângelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerês. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespepeare… Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!

Miguel Torga - Diário II